Update em câncer gástrico precoce e tratamento endoscópico em 2020

Na quarta edição do Journal Club, a Dra. Daniela Medeiros Milhomem Cardoso criou um mapa para explicar o rastreamento do Câncer Colorretal e seus números de maneira didática, visual e simplificada.
postado 13/10/2020 por Dra. Daniela Medeiros Milhomem Cardoso

ATUALIZAÇÕES COMENTADAS – JAPANESE GASTRIC CANCER TREATMENT GUIDELINES (5th ED)


A edição do mês de Outubro de 2020 do Journal Club da Sobed traz um assunto interessante e bastante instigante para os endoscopistas brasileiros: um update sobre manejo de câncer gástrico precoce baseado na publicação da JGCA (Japanese Gastric Cancer Association), no periódico Gastric Cancer.

Atualmente o câncer gástrico continua sendo o quinto câncer mais incidente e o terceiro em mortalidade no mundo. Nos últimos anos esforços significativos vem sendo dedicados não apenas para aumentar a conscientização sobre esta condição, mas também para fomentar a uniformidade das condutas, padronizar tratamentos das formas precoces e definir bases para o desenvolvimento da diretrizes, especialmente no mundo ocidental.

O artigo Japanese Gastric Cancer Treatment Guidelines (5th edition) faz um resumo em língua inglesa das evidências mais recentes em relação ao tema. Essas evidências já haviam sido previamente publicadas na forma de um livro, em 2018, no Japão.

 O artigo inclui novidades no manejo cirúrgico, em novos tratamentos quimioterápicos e dedica uma seção inteira ao papel do tratamento endoscópico do câncer gástrico precoce.

Os principais destaques da publicação foram:

  1. Revisão das indicações para ressecção endoscópica do câncer gástrico precoce
  2. Inclusão dos chamados Critérios Relativos de ressecção endoscópica.
  3. Adoção de um novo critério para avaliação da curabilidade após ressecção endoscópica: o sistema eCura
  4. Conduta pós ressecção endoscópica baseada no sistema eCura


As principais orientações da diretriz da JGCA, no que diz respeito ao manejo endoscópico do câncer gástrico precoce, serão comentadas na forma de tópicos. A Figura 1 (adaptada da publicação original) destaca na forma de algoritmo, os principais caminhos para a tomada de decisões em relação ao manejo do câncer gástrico precoce.


FIGURA 1. ALGORITMO PARA TOMADA DE DECISÕES NO MANEJO DO CÂNCER GÁSTRICO PRECOCE



MODALIDADES DE RESSECÇÃO ENDOSCÓPICA

Existem duas técnicas reconhecidas para a ressecção endoscópica do câncer gástrico precoce: a mucosectomia e a dissecção submucosa. A mucosectomia consiste basicamente, na elevação da lesão com injeção submucosa e na remoção do espécime com o uso de uma alça de polipectomia e corrente elétrica. A dissecção submucosa consiste na elevação da lesão e da mucosa adjacente, seguida da secção da lesão (circunferencial ou não) com o auxílio de acessórios endoscópicos dedicados, as chamadas facas. À seguir, a camada submucosa é dissecada sob visão direta, junto à camada muscular própria.

A mucosectomia se limita pelo tamanho e forma das lesões. Por esse motivo, a taxa de ressecções em múltiplos fragmentos e de recorrências é maior para lesões com tamanhos superiores a 20 mm. A dissecção submucosa é capaz de remover lesões com tamanhos superiores a 20 mm e com formatos variados em fragmento único, com baixas taxas de recorrência e maiores taxas de ressecção em bloco e ressecções curativas. Por outro lado, é um procedimento mais complexo, com maior curva de aprendizagem e maiores taxas de complicações quando comparado à mucosectomia.



MANEJO DO ESPÉCIME RESSECADO

As amostras ressecadas devem ser manuseadas de acordo com as regras descritas na Classificação Japonesa de Carcinoma Gástrico 15ª edição. Via de regra os espécimes devem ser cuidadosamente fixados em uma superfície cortiça ou isopor com alfinetes e medidos. Marcação das extremidades oral e anal é recomendada. O espécime é, então, colocado em solução de  formaldeído, e após a fixação é seccionado em “fatias” a cada 2 ou 3 mm e incluído em blocos de parafina para coloração de hematoxilina e eosina.

As lesões são histologicamente classificadas em tumores bem diferenciados ou tumores indiferenciados. Os primeiros incluem lesões malignas epiteliais, podendo ser de subtipo papilar (pap) ou tubular (tub1 ou tub2). Os últimos incluem tumores pobremente diferenciados (por 1 e por2) e com células em anel de sinete (sig). Caso o achado seja de carcinoma mucinoso (muc) o mesmo é considerado como lesão indiferenciada.

Um tumor que contenha tanto componentes diferenciados, quanto do tipo indiferenciado deve ser classificado de acordo com o tipo predominante. Além disso, quando mais de um tipo histológico é encontrado em um tumor, todos devem ser registrados na ordem de predominância quantitativa, por exemplo, tub2> tub1.

O achado histológico de ulceração deve ser registrado e uma correlação com os achados endoscópicos e radiológicos é desejável, principalmente para fazer um diagnóstico diferencial com cicatrizes de biópsias, por exemplo.


INDICAÇÕES DE RESSECÇÃO ENDOSCÓPICA

Esse tópico traz uma atualização. Além das já conhecidas indicações absolutas e expandidas para ressecção endoscópica, a diretriz da JGCA coloca a chamada indicação relativa.

Dentro dos chamados critérios ou indicações absolutas, o risco de metástase linfática é negligenciável e o tratamento endoscópico tem equivalência com o tratamento cirúrgico convencional. Os critérios ou indicações expandidas são, ainda, tidos como indicações experimentais, nas quais há evidência suficiente para garantir um resultado equivalente ao do tratamento cirúrgico a longo prazo após endoscopia, com taxas de metástases linfáticas inferiores a 1%.

A novidade é o conceito de critérios ou indicações Relativas, que inclui lesões que normalmente seriam tratadas por ressecção cirúrgica, no entanto, devido a circunstâncias clínicas do paciente (idade avançada, alto risco cirúrgico, por exemplo), a cirurgia não pode ser recomendada.  Nesses casos a ressecção endoscópica pode ter potencial de cura. O paciente deve ser informado do risco de ressecção não curativa e de lesão residual.

A Figura 2 mostra as indicações para ressecção endoscópica.


FIGURA 2. CRITÉRIOS PARA RESSECÇÕES ENDOSCÓPICAS.

 


CURABILIDADE

Duas condições são essenciais na avaliação da curabilidade das lesões: remoção completa do tumor e risco de metástases linfáticas.

Em 2017 Hatta e col propuseram um escore para avaliação da curabilidade após ressecção endoscópica do câncer gástrico precoce: o escore eCura.

Curabilidade endoscópica A (eCura A) indica que todas as seguintes condições foram atendidas em lesões sem ulceração (UL 0):  ressecção em bloco, tumor do tipo diferenciado, de qualquer tamanho, com margens horizontal (HM0) e vertical (VM0) livres e sem infiltração linfática e vascular (LY0 e V0).

Se o tumor tiver componente do tipo indiferenciado, o tamanho do componente indiferenciado deve ser inferior e 20 mm, caso contrário, deve ser classificada com eCura C2.

Se a lesão tiver ulceração (UL1), o tamanho deve se limitar a 30 mm, com tumor do tipo diferenciado, de qualquer tamanho, com margens horizontal (HM0) e vertical (VM0) livres e sem infiltração linfática e vascular (LY0 e V0).

Curabilidade endoscópica B (eCura B) inclui lesões do tipo indiferenciado e que infiltram a camada mais superficial da submucosa (500 µm SM1). Em lesões do tipo indiferenciado o critério eCura B inclui lesões predominantemente indiferenciadas, com até 20 mm, sem ulceração (UL0), com margens horizontal (HM0) e vertical (VM0) livres e sem infiltração linfática e vascular (LY0 e V0).

O critério eCura B inclui, ainda, lesões diferenciadas, que infiltram até SM1 (invasão de até 500 µm na submucosa), com tamanho limitado a 30 mm, com margens horizontal (HM0) e vertical (VM0) livres e sem infiltração linfática e vascular (LY0 e V0). Caso haja componente indiferenciado na sunucosa, a lesão deverá ser classificada como eCura C2.

Curabilidade endoscópica C (eCura C) inclui lesões que não preenchem os critérios de cura estabelecidos em eCura A e eCura B.

A lesão é considerada eCura C1 quando é do tipo histológico diferenciado e preenche critérios para classificação eCura A ou B, no entanto, não foi ressecada em bloco ou possui margem horizontal comprometida. Todas as demais situações são classificadas como curabilidade C2 (eCura C2).



CONDUTA APÓS RESSECÇÃO ENDOSCÓPICA


LESÕES CLASSIFICADAS COMO eCura A e eCura B

Seguimento com endoscopia anual ou bianual está indicada para lesões eCura A. Seguimento adicional com TC e USG está indicado para lesões eCura B. Para ambas situações está indicada pesquisa de H. pylori e erradicação quando presente.

LESÕES CLASSIFICADAS COMO eCura C1

Nessas situações, o risco de metástases linfáticas é baixo e as seguintes condutas devem ser discutidas com os pacientes: repetir a Dissecção submucosa, utilização de método de ablação em lesões residuais, indicação de cirurgia, seguimento endoscópico rigoroso.

Para lesões diferenciadas com tamanho ≤ 3 cm (seja UL1 ou pT1b1 [SM1]), o tamanho da lesão residual deve ser reavaliado por endoscopia. Quando a soma do tamanho das lesões ressecadas e residuais excede 3 cm, a gastrectomia com linfadenectomia deve ser indicada. Além disso, pacientes com margem horizontal positiva dentro da porção da submucosa infiltrada e naqueles que foram submetidos à ressecção fragmentada em que a linha de ressecção envolveu a porção da submucosa infiltrada, a gastrectomia com linfadenectomia deve ser indicada.

LESÕES CLASSIFICADAS COMO eCura C2

Nesses casos a gastrectomia com linfadenectomia está indicada. Quando a cirurgia não pode ser recomendada devido à idade avançada ou alto risco pela presença de comorbidades graves, o seguimento pode ser uma opção a ser discutida com o paciente e familiares. Deve-se pesar riscos e benefícios, levando em consideração a morbidade e mortalidade do tratamento cirúrgico e a possibilidade de lesão residual, metástase linfática e evolução desfavorável com prognóstico reservado.

A Figura 3 mostra os critérios para estabelecer a curabilidade e a conduta baseados no sistema eCura.


FIGURA 3. CLASSIFICAÇÃO DA CURABILIDADE E CONDUTA BASEADOS NO SISTEMA ECURA.


Espero que a leitura tenha sido produtiva e que os novos conceitos introduzidos tragam melhores resultados e facilitem a tomada de decisão mediante um paciente com câncer gástrico precoce. Oferecer conteúdo científico de qualidade, de forma moderna e dinâmica, promovendo o estudo e a pesquisa em endoscopia digestiva no nosso país são os nossos objetivos. Grande abraço e até o próximo Journal Club!




REFERÊNCIAS:


  1. Japanese gastric cancer treatment guidelines 2018 (5th edition). Japanese Gastric Cancer Association. Gastric Cancer 2020. Published online on Feb 14,2020. https://doi.org/10.1007/s10120-020-01042-y.
  2. Hatta W, Gotoda T, Oyama T, Kawata N, Takahashi A, Yoshifuku Y et al. A Scoring System to Stratify Curability after Endoscopic Submucosal Dissection for Early Gastric Cancer: "eCura system". Am J Gastroenterol 2017;112(6):874-881. doi: 10.1038/ajg.2017.95.